“Não queremos cargo, não queremos emprego, a gente quer água, água pra viver, pra matar a sede, pra tomar banho, pra dar remédio pros patrícios”. Este é parte do pedido de socorro feito por Luzinete Terena na manhã desta quarta-feira, 27, enquanto a Tropa de Choque da Polícia Militar do Mato Grosso do Sul (MS) seguia com a invasão à aldeia Jaquapiru, na Reserva Indígena de Dourados.
A ação policial, considerada desproporcional pelos indígenas, começou na rodovia MS-156, que corta a Reserva de Dourados, onde os indígenas iniciaram um protesto denunciando a falta de água que assola ao menos cinco mil Terena e Guarani Kaiowá (leia mais abaixo). Conforme informações preliminares, ao menos dois indígenas foram presos, há mandados de prisão e pelo menos 15 indígenas acabaram feridos por tiros de bala de borracha e bombas, além de problemas respiratórios ocasionados por spray de pimenta.
Três feridos, duas mulheres e uma criança, foram encaminhados para internação hospitalar, mas passam bem, com alta programada para o final da tarde. O Distrito Sanitário especial Indígena (DSEI) organizou uma Força Tarefa de apoio aos feridos. No final da tarde, os Terena e Guarani Kaiowá voltaram a interditar a MS-156.
Pela manhã, a Tropa de Choque avançou sobre os indígenas ainda na rodovia, os empurrando para a Reserva, e não parou de avançar até chegar à aldeia Jaguapiru. Os policiais invadiram as ruas da comunidade levando terror aos moradores, arremessando bombas, inclusive nas casas, e atirando “em tudo o que se movia e se defendia das agressões”, conforme os diversos pedidos de socorro, como o de Luzinete Terena, que chegaram em grupos de WhatsApp.
Como resultado da ação, o clima de revolta se instalou entre os indígenas da Reserva, que partiram de outras localidades para o local atacado pelos agentes públicos; em resposta, mais pelotões da polícia se dirigem ao local. Por volta do horário do almoço, houve uma trégua da Tropa de Choque.
O Ministério Público Federal (MPF) se deslocou à Reserva em uma tentativa de mediar a situação. A equipe local do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) reuniu 65 vídeos feitos pelos indígenas, que mostram o uso excessivo da força policial diante de pessoas sem margem de defesa.
“A situação acalmou, mas segue uma certa tensão porque foi um ataque muito agressivo. Muita gente ferida, entrou na aldeia, chegou às moradias, ao quintal das casas. Isso gera revolta, um sentimento de impunidade. O protesto estava pacífico. Depois de tudo o que a TRopa de Choque fez, o governo mandou um representante da Polícia Militar para negociar com a população”, explica Cristiane Terena.
Nos áudios, é possível ouvir ao fundo sons de tiros e bombas explodindo. Em um dos vídeos, um Terena é preso com brutalidade mesmo sem reagir. Desesperada, tentando acudir o esposo, uma mulher leva um tiro à queima roupa na perna esquerda, na altura da coxa, enquanto idosos e crianças tentam se proteger.
O rezador Getúlio Guarani Kaiowá, entre outros rezadores e rezadoras, estava no protesto e acabou alvo da ação policial. Como vários indígenas, passou mal com o spray de pimenta usado pelos policiais. Só carregava o mbaraká. “Como nossos povos vão pra um protesto violento levando rezador? Era para mostrar às autoridades nosso descontentamento. Estamos passando sede, criança sem estudar por falta d’água. Era isso. A polícia foi covarde mais uma vez”, declarou uma indígena em vídeo divulgado pela comunidade.
Em abril do ano passado, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) protocolou impetrou no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) para tratar da violência policial no Mato Grosso do Sul contra os povos indígenas. No último dia 16 de outubro, o processo foi encaminhado ao relator, responsável pelo caso, o ministro Gilmar Mendes.
Invasão a território indígena
“A polícia não deveria entrar na Reserva porque é uma área indígena, federal. O que já é grave. Acontece que se trata da maior Reserva do país, ou seja, é uma ação desproporcional, irregular e que pode gerar uma revolta dos indígenas com resultados catastróficos. Na verdade, um massacre de Forças de Segurança Pública contra população civil. As autoridades públicas precisam entender e agir diante da gravidade da ação policial para evitar uma escalada”, salienta Flávio Vicente Machado, do Cimi Regional MS.
O deputado estadual Pedro Kemp (PT/MS) se dirigiu de forma contundente à Assembleia Legislativa, durante a sessão desta manhã, frisando que “a Polícia Militar não pode entrar em Terra Indígena. Se morrer um indígena sequer na Reserva de Dourados hoje a responsabilidade é do secretário de Segurança Pública e do Comando da Polícia de Dourados. A estrada estava fechada por um protesto da comunidade indígena que não tem água para beber! A polícia poderia estar na estrada, acompanhando o movimento, mas ela não pode entrar na aldeia!”.
Conforme o gabinete de Kemp apurou, e o parlamentar denunciou, os policiais atiraram nas proximidades de uma escola. “Dando tiro perto de professor, de mães, de crianças. Isso não é a primeira vez que isso acontece aqui no Mato Grosso do Sul. Toda vez que a comunidade indígena faz um movimento, a polícia vai com truculência atrás. É de responsabilidade da Polícia Federal a segurança dentro das aldeias, da Funai. Não tem mandado judicial, não pode entrar! Repito: se morrer indígena hoje a responsabilidade é do governo estadual”.
No programa matinal de uma rádio local, o apresentador saudou a ação policial que “liberou a estrada dos indígenas vagabundos”. Para o parlamentar, “os indígenas estão muito certos de fechar a rodovia, sim, porque estão cansados de promessas. Mandam um carro pipa hoje e amanhã. Mas e depois? Não tem!”.
Acordo entre Itaipu e MPI
Desde o início desta semana, os povos Terena e Guarani Kaiowá da Reserva de Dourados, formada ainda pela aldeia Bororó, protestam contra a falta de água crônica que aflige uma parcela significativa dos cerca de 17 mil indígenas que sobrevivem em um espaço de quase 3.500 hectares. Nos condomínios fechados que ficam no entorno da Reserva, a realidade é outra: não falta água. O protesto dos indígenas é bastante comum, mas desta vez o estopim está em um convênio que promete beneficiar “35 mil Guarani Kaiowá”, mas sem contemplar a Reserva de Dourados – ao menos inicialmente.
Na última quinta-feira (21), foi assinado em Ponta Porã (MS) um convênio voltado à implantação, ampliação e melhoria de sistemas de abastecimento de água em 18 aldeias indígenas localizadas no Cone Sul do estado. O investimento de R$ 60 milhões será realizado por meio da Empresa de Saneamento de Mato Grosso do Sul (Sanesul) e Secretaria de Saúde Indígena (Sesai).
O recurso sairá da Hidrelétrica Itaipu Binacional, que fechou o acordo com o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e o governo estadual. No ato da assinatura do convênio, estavam presentes, além da ministra Sônia Guajajara e do diretor-geral da Itaipu, Ênio José Verri, o governador Eduardo Riedel, o coordenador da Sesai, Weibe Tapeba, além de prefeitos e representantes indígenas. As obras serão realizadas por lotes, e a Reserva de Dourados acabou não contemplada.
Com informações da assessoria
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