Nas entrelinhas de histórias de dor e conflito, a Secretaria Especial da Mulher (SEM) da Assembleia Legislativa de Roraima (ALE-RR) vem reescrevendo o destino de famílias marcadas pela violência doméstica. Com uma abordagem inovadora e multifacetada, a secretaria não apenas ampara as vítimas através do Chame (Centro Humanitário de Apoio à Mulher), mas desafia padrões seculares de agressão por meio do Centro Reflexivo Reconstruir.
Neste domingo (22), o Centro, que acolhe homens encaminhados pelo Tribunal de Justiça de Roraima (TJRR) para cumprimento de penas alternativas e também aqueles que, voluntariamente, buscam romper o ciclo de violência, celebra 8 anos de existência, tendo transformado a vida de 327 homens desde 2016.
Segundo a deputada Joilma Teodora (Podemos), secretária Especial da Mulher, o programa tem como meta promover a remodelação comportamental por meio da reflexão, buscando interromper as agressões e fortalecer os laços familiares.
“Assim como o Chame, que dá total apoio às vítimas de violência doméstica, o Centro também vem realizando um papel de ressocialização do parceiro agressor. Lá, ele recebe orientação e apoio da nossa equipe técnica. O primeiro passo é fazer com que o agressor tenha consciência do erro cometido; já o segundo é trabalhar para que não cometa mais o mesmo crime e retorne ao seio familiar transformado. Como secretária, fico extremamente emocionada quando conseguimos colaborar com a reestruturação de uma família”, destacou a parlamentar.
Para o presidente da Assembleia Legislativa, deputado Soldado Sampaio (Republicanos), as matérias relacionadas à proteção e garantia de direitos das mulheres são prioridade na Casa. Ele lembra que nos últimos cinco anos, mais de 70 textos foram aprovados pelos deputados estaduais e sancionados pelo Poder Executivo.
“Nós, enquanto parlamento, precisamos fortalecer a rede de apoio a essas mulheres, e isso já ocorre de maneira excelente através do Chame, com foco nas mulheres, e do Reconstruir, que trabalha para que esses homens que foram condenados repensem seus comportamentos. É uma forma de também romper o ciclo de violência e tirar o Estado de Roraima de um ranking negativo”, comentou Sampaio.
Encontros, ressignificação e feedbacks
O programa oferece 48 encontros ao longo do ano, realizados às segundas e terças-feiras, nos períodos matutino e vespertino. O número de reuniões de cada participante é determinado judicialmente.
“Os homens são encaminhados pela Vara de Penas e Medidas Alternativas [VPM]. Atualmente, existe um termo de cooperação entre o centro e o Tribunal de Justiça que viabiliza o envio desses participantes ao programa como parte de medida judicial. A duração dessa pena alternativa varia entre seis meses e um ano”, explicou o coordenador do projeto, Jadiel Ribeiro.
Cada encontro aborda uma temática específica, contemplando transtornos de personalidade, tipologias de violência, paternidade, uso de substâncias e aspectos legais. As atividades são estruturadas em três áreas fundamentais: psicologia, direito e assistência social.
A análise psicológica constitui o núcleo dos encontros, dedicando-se a compreender a gênese dos comportamentos. A investigação remonta às primeiras experiências de vida, mapeando os traumas que impactaram significativamente a formação emocional e comportamental desses homens.
“Geralmente, esses homens vivenciaram violência doméstica ou cresceram em ambientes violentos. Muitos relatam que seus filhos têm apresentado comportamentos semelhantes aos que eles próprios tinham nessa fase da vida. Isso evidencia a reprodução de padrões de comportamento que buscamos trabalhar no Reconstruir. Nosso foco é ajudá-los a compreender as raízes de seus comportamentos e a romper ciclos de violência aprendidos desde a infância”, explicou o coordenador.
As reuniões, que inicialmente se apresentam como uma obrigação legal, gradualmente se transformam em uma oportunidade de ressignificação das atitudes e reconstrução familiar. É frequente o recebimento de feedbacks positivos antes e após o ingresso no programa.
“Até hoje, recebemos informações tanto dos homens quanto de suas esposas. Já houve mulheres que pediram para participar das atividades para entender como funciona o grupo, porque, inicialmente, elas não acreditavam na transformação. Ficavam surpresas ao perceber que seus maridos saíram completamente diferentes. Há homens que conseguiram alterar seu comportamento e ainda permanecem nos relacionamentos em que aconteceu a violência. Eles estão conseguindo, aos poucos, elaborar novas formas de se relacionar com suas famílias”, concluiu Ribeiro.
Mudar para recomeçar, esse é um slogan que define bem o trabalho do Reconstruir. Mudanças que Luiz Alberto Gomes do Nascimento considera significativas. Ele participou do ciclo de atividades em junho deste ano e compartilhou sua experiência, ao destacar que aprendeu a “controlar o Hulk”, dentro dele.
“Às vezes, eu estava errado e não aguentava ouvir. Hoje, eu escuto. Mudei muito, aprendi a refletir, não podemos agir por impulso, porque o ser humano é complicado e não é bem assim. Esse projeto é maravilhoso! A equipe é maravilhosa. Só tenho a dar nota 10. No início, quando eu bati à porta com vergonha, imaginava que era uma bobagem. Depois, não. Quando um novato chegava, eu já falava: ‘Pode entrar’”, contou Luiz, que é carreteiro.
Interessados em participar dos encontros podem se dirigir à sede da Secretaria Especial da Mulher, localizada na Avenida Santos Dumont, 1470, bairro Aparecida, em Boa Vista. Informações sobre as reuniões também podem ser obtidas pelo WhatsApp (95) 98402-0502 ou pelo e-mail centroreflexivoreconstruir@gmail.com.
Papéis de gênero
Mas, afinal, o que leva homens a agredirem as companheiras que dizem amar? A resposta, multifatorial, envolve aspectos culturais, biológicos e sociais. A própria estrutura social e os papéis de gênero, segundo o psicólogo Wagner Costa, podem oferecer importantes pistas sobre essa problemática.
“É fundamental refletirmos sobre a cultura de criação em nossa sociedade. Historicamente, os homens foram socializados para entender as mulheres como propriedade, devendo ser a eles submissas. Inclusive, existem interpretações religiosas que ainda defendem esse tipo de pensamento, completamente anacrônico no século atual”, explicou o psicólogo.
Desde a infância, os homens são condicionados a reprimir emoções, o que reforça estereótipos de gênero. A figura masculina é tradicionalmente associada à força – física e mental –, enquanto às mulheres se atribui a fragilidade, autorizando-as a expressar sentimentos sem julgamentos. Uma das consequências mais perversas dessa construção é a necessidade inconsciente de os homens provarem a masculinidade a todo custo, o que pode conduzi-los à perda de controle, à violência e levar as mulheres à submissão.
“Culturalmente, muitos homens se julgam no direito de gritar, agredir e violentar. Paradoxalmente, as mulheres também foram treinadas para a submissão. É sintomático, por exemplo, o costume de mulheres trocarem de nome no casamento – prática que no século passado representava literalmente a transferência de propriedade familiar, mas que hoje contradiz o ideal de independência feminina”, ressaltou Costa.
Embora biologicamente os homens possam ter maior predisposição à agressividade – possivelmente herança de padrões evolutivos de caça e sobrevivência –, isso não justifica comportamentos violentos. “É fundamental que os homens se eduquem para interagir com gentileza, utilizando sua força apenas quando estritamente necessário e nunca contra alguém mais vulnerável”, ponderou o especialista.
Romper com os papéis de gênero, contudo, não é uma tarefa simples. A terapia, conforme destaca o psicólogo, surge como ferramenta essencial nesse processo de ressignificação. Ela auxilia os assistidos a compreenderem sua própria agressividade, conscientizando-os sobre comportamentos nocivos e fornecendo estratégias efetivas de controle emocional.
Outro fator relevante é a inteligência emocional. “Isso faz com que se desenvolva a capacidade de identificar, compreender e gerenciar emoções, buscando formas construtivas de comunicação e resolução de conflitos”, apontou o especialista.
A transformação, porém, precisa começar na infância. “É crucial educar as novas gerações para o respeito mútuo: ensinar meninas a serem independentes e meninos a respeitarem as diferenças. O futuro da humanidade depende do tipo de educação que oferecemos aos nossos filhos. A mudança não será instantânea, mas cada geração pode contribuir para desconstruir padrões machistas, cultivando relações mais igualitárias e respeitosas”, alertou Costa.
Conteúdo e foto: ALERR